Wednesday, February 03, 2010

Lisboa cor de rosa e cinza


Nasci na Estrada de A-da-Maia em Benfica.
Em Agosto de 1958 mudámo-nos para o Bairro de Santa Cruz. Eu tinha dois anos, a minha irmã 9 meses e o meu irmão viria a nascer nessa casa cor de rosa - o 17 da rua 8 - em 1960.
Lisboa foi para mim, durante muitos anos, aquele Bairro de famílias com filhos, pequena aldeia abrigada e segura, a nossa ilha. E a Mata, manchazinha de Monsanto ali mesmo ao pé de casa...
Lisboa eram os jogos da cabra-cega, do elástico e da macaca, as ameixas, os limões e os alperces, os miúdos à chinchada pela calada da noite e o meu pai a espantá-los como pardais, o homem do pitrolino com o seu cavalo e carroça de traquitanas, belo cigano de chapéu de aba larga ai Jesus das criadas (naquele tempo havia criadas, raparigas que moravam connosco como família), o velhote dos gelados no triciclo motorizado há frutas ou chocolate, cone de bolacha normal ou especial e chocmint!, o senhor Vitorino com as hortaliças e sempre uma cenoura para oferecer ao “amigalhaço”, o menino lá da casa, jogos de futebol de portão a portão (e o menino brilhava) muda aos 5 acaba aos 10, limpa-chaminés enfarruscados, grandes cordas e escadotes como na Mary Poppins, a mulher robusta vendia o peixe à porta da cozinha, canasta pesada e grandes saias compridas, o homem do leite, o jarro maior e medidas de quarto, de meio, de litro, e os pregões!! “Há praí traaapos, jornaais e garraafas para vendeer?”, “Há figuiinhos maduriinhos! Quem quer fiiigos quem quer almoçaaar?!”, o “Amoladooore!” de flauta de pã, dizia a minha mãe que o amolador anunciava a chuva, e nós “um dó li tá cara de amendoá um secreto coloreto um dó li tá quem está livre livre está!” e “um aviãozinho militar atirou uma bomba ao ar a que terra foi parar?”, e “que linda falua que lá vem lá vem/ é uma falua que vem de Belém/ que vem de Belém que vem de Benfica/ é uma falua que lá vem cá fica./ vou pedir ao senhor barqueiro que me deixe passar/tenho filhos pequeninos não os posso sustentar...”
Às vezes rebanhos de ovelhas lá no Bairro. Havia quintas. Na Estrada de Benfica havia eléctricos de duas carruagens e autocarros com entrada atrás, verdes, de dois andares. Eu lá em cima a espreitar por cima dos muros das quintas. Havia a Quinta das Flores na Estrada de Benfica

14 comments:

Anonymous said...

Este último texto está muito bonito, quase que me senti a morar na sua rua, igual a muitas das ruas dos seus admiradores e amigos. Amigos, apesar de a conhecer-mos apenas dessa vida dura que é ser artista. Tive saudades desses tempos despreocupados e felizes que recorda, quando todos no Bairro se conheciam, havia mais tempo para nós, para a família, para os amigos e a nossa relação e ritmos de vida estavam mais próximos da Natureza … mas o progresso veio … trouxe tanta coisa boa, mas levou-nos outras tantas que nunca deveriam ter ido …
Espero que a Lena no seu próximo livro nos traga mais estórias de vida tão deliciosas e bem contadas como esta de “Lisboa cor de rosa e cinza”.
Lena, quero desejar-lhe a si e a todos os seus, um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo.
Que 2008 lhe traga a si e aos que mais ama, tudo o que merecem e desejam.

Um enorme beijo para si. Seu ouvinte e leitor. Seu fã.

Santa Bárbara

Anonymous said...

Muito andei eu nesses eléctricos... Tinha família na Cláudio Nunes e, nesse, tempo, as visitas eram sobretudo o prazer da viagem de eléctrico, à janela... Já no início da década de 70 fui para a Pedro de Santarém, e a viagem de eléctrico que fazia diariamente entre a Av Duque d'Ávila (sim, também as Avenidas Novas, nesse tempo, tinham mercearias, tabernas com carvoaria anexa, pastelarias, drogarias repletas de brinquedos em plástico, papelarias... e os pais não tinham medo de deixarem os filhos brincar nas ruas...) e Benfica, tinha 3 modalidades: 1$00, bilhete cor-de-rosa, só até Sete-Rios; 1$50, bilhete azul; 2$00, bilhete creme, de correspondência com o metro...
Perto de onde hoje é a Fonte Nova (e em muitos outros sítios da zona) havia uma quinta enorme e, onde hoje é a rua de acesso ao Colégio Militar, corria a temida Azinhaga da Fonte, onde éramos assaltados por meninos maus. Mas o melhor era mesmo aproveitar a falta de algum professor e ir para o Monsanto, para a "cratera" (depois transformada em pedreira e soterrada de entulhos) ou para as minas de água, com lanternas, como se fosse numa história dos famosos cinco da Enid Blyton...
Também nunca mais me esqueci da mulher dos figos (para além do padeiro, da leiteira, do ardina coxo que dobrava o Diário de Notícias como só ele sabia e percorria as ruas arremessando-o para as varandas dos clientes...). O que para mim era especial na mulher dos figos é que se começava a ouvir o seu pregão quando ela ainda estava lá para as bandas do Técnico ou da Avª da República e, depois, ia-se aproximando, ecoando nas longas avenidas cheias de sol. Lembro-me de ficar extasiado com aquela cantilena lânguida a ecoar cada vez mais perto... E claro que recordo a melodia...
Ah... e as andorinhas... que chegavam doidas de alegria e se instalavam no telhado do lado do saguão... O sol ficava diferente nessa altura do ano... Como dizia o poeta "A força mais guardada que há na luz, só se consente nas superfícies raras..."

Bons concertos é que eu desejo!!!

Marley

Helena said...

obrigada, mar
:)*

Obscuridade Translúcida said...

Belo texto de uma lenda viva...

José Santos said...

Os melhores textos são escritos com saudade...!
Já estás com saudades Lena?
É natural. As tuas raízes estão aqui.

Eu vivo em Benfica há quase 11 anos. Perdi as quintas, os elécricos e os autocarros de dois andares. Não ouvi os pregões mas ainda ouço o tocar do amolador que me faz lembrar o meu cão que morreu atropelado há dois anos... como ele detestava o som do amolador...
Perdi os anos de ouro do Fonte Nova, nunca fui ao cinema Turim. Cheguei com o Colombo.

Vivo numa rua calma. Num bairro cheio de velhotes. Ainda tenho as mercearias, conhecem-me na pastelaria Nilo, na frutaria, no talho, na florista. Sim, aqui as pessoas ainda se cumprimentam e tratam-se por vizinhos!

É um bom bairro!

Vai-nos contando as tuas memórias... Nós gostamos! E espero estar aqui ou n'outro sítio qualquer, daqui a vinte anos a ler as tuas recordações do Largo da Alegria que para ti é agora uma novidade!

Um grande beijinho e votos de um Bom Ano.

Bic Laranja said...

Que belíssimo texto! Cheio de evocação.
Os eléctricos acabaram em 73. Os autocarrosfoi mais tarde. Das quintas sobra o nome, quando sobra, nregado às urbanizações novas.
A sua voz, porém está imaculada.
Cumpts.

Helena said...

:)

Alexa said...

Texto lindissímo!

Para a partilha de mais memórias sobre Benfica, visite:
http://mercadodebemfica.blogspot.com

Um abraço

J. said...

também gostei imenso do texto... e lembro-me tao bem dessas brincadeiras e cançoes...

São said...

Eu sou mais velha, tenho ainda melhor memória de coisas vividas na infância e que nesta brutal mudança a que a minha geração foi sujeita - para bem e para mal - se perderam por completo.

Gostei muito da maneira como nos trouxe as suas recordações.

Um bom fim de semana.

Só não gosto das letrinhas de verificação, rrrs é a segunda tentativa...

Helena said...

são, peço desculpa
tive que o fazer por causa dos chineses que insistem em invadir isto!!
lamento, mas é a única maneira de os travar

beijo :)

Haryhanne said...

lindo texto bela narrativa de uma vida tu és linda Lena ou Helena como quiseres que te chame és linda e cheia de talento foste inspiração para tanta raparigas da nossa geração e sabes estou feliz de te ter encontrado aqui neste mundo que é a Internet pois tinha perdido o rasto da grande artista que eu tanto gostava de ouvir e agora de repente encontro-te
felicidades de alguém que não fazes a mínima ideia de quem seja mas que é uma grande admiradora tua
Paula Silva

Anonymous said...

Lena: carinhoso texto...sim senhora!

Já agora: a égua do pitrolino, chamava-se FLECHA,

...e o homem dos gelados (fruta ó chiclate) era o Sr. Eduardo - no inverno, vendia castanhas assadas.

há, há, há...


carmona

Helena said...

boa!!!
lol

merci ;)